..:: Abade R. Fatia ::..

e tantas vezes aqui deitado a olhar para o tecto, à espera. Sempre à espera... oiço passados, faço planos envenenado em pensamento, vejo luzes, como árvores, penso em ti, sinto-me alguém na minha cama. A mente é um lugar aleatório

terça-feira, outubro 30, 2007

fotografia

- Mesmo junto aos teus pés - disse o Mosquito (Alice encolheu os pés um pouco assustada) - podes ver uma Mosca-Pão-Com-Manteiga. As asas dela são fatias fininhas de pão com manteiga, o corpo é uma côdea e a cabeça é um torrão de açúcar.
- E que é que ela come?
- Chá fraco com leite.
Na cabeça de Alice surgiu um novo problema:
- E se não conseguir arranjar chá nenhum? - sugeriu ela
- Então morre, claro!
- Mas isso deve acontecer muitas vezes - observou Alice, pensativa.
- Acontece sempre - disse o Mosquito.

Lewis Carroll - Alice do Outro Lado do Espelho

sexta-feira, outubro 26, 2007

fotografia

E também pela primeira vez tive consciência de que aquele tenente de trinta e dois anos, cujo rosto severo portava traços da cruciante experiência pela qual passara, embora fosse robusto como um carvalho tinha já deslumbrantes cabelos brancos nas têmporas. E de um tão puro branco era essa marca de enorme sofrimento que um fio de teia de aranha agarrado ao seu bivaque se tornava invisível junto da sua fonte. Quanto mais fixamente olhava menos conseguia ver o fio entre aqueles fios de neve.

Mikhail Cholokhov - A Ciência Do Ódio

quinta-feira, outubro 18, 2007

Mandar tudo às urtigas

Guardei os números e os nomes todos e a agenda e o telefone mais os fios. Guardei tudo no caixote do lixo. Nesta vida não há regressos.

terça-feira, outubro 16, 2007

Quando chego

Quando chego a casa
Venho da escola e do trabalho
E tenho a cabeça num nagalho.

Quando chego a casa
Como o jantar e vejo televisão
E adormeço na cama do meu irmão.

Quando chego a casa
Visto o pijama e tiro os sapatos
E ainda lavo os dentes e os pratos!

Quando chego a casa não te vejo,
Porque já dormes molengona
Entre palmeiras baloiçando
Numa rede de lona.

domingo, outubro 14, 2007

fotografia

Senti compaixão - escreve - por aquele frágil contrabandista domiciliário em Caiena. Senti compaixão por todas as pessoas e por todas as coisas que via. Ali ficavam, como as pessoas que se vêem da janela, nos apeadeiros das localidades do campo - a minha felicidade imerecida era partir.

Adolfo Bioy Casares - Plano de Evasão

sábado, outubro 13, 2007

Sobre um costume budista

É fácil andar quando não nos doem os pés.

terça-feira, outubro 09, 2007

zebra riscada

Os piropos que ouvia quando ia a casa almoçar, vindos lá de cima do andáime do prédio da melhor amiga do 8º ano. Enquanto o rabo gelatinava com o baque dos pés no chão, as faces ruborizavam ao ritmo acelerado dos assobios cruzados. E refugiava-se da selvajaria em casa. A sua casa era de tijolo vermelho e segura.

O leopardo ia lá todos os dias à janela lamber-lhe o focinho, e depois vinha-se embora devagar. Não tinha nada para fazer e não tinha medo da rua.

Ela sim. tinha os planos de vida das zebras estabelecidas: aprender estrangeiro, tirar um curso e ir para o estrangeiro, falar estrangeiro com os estrangeiros. Aprender as coisas dos estrangeiros e enviar postais em estrangeiro. Até um dia trazer o estrangeiro para casa.

Era o sonho dela ou dos progenitores. Nunca me chegou a contar.
Às vezes penso nessa zebra riscada e nos gorilas das obras.

Os gorilas fazem parte da nossa vida. Mas ao contrário de nós, que vamos acabando por morrer, eles sempre existiram e existirão Geração após geração, gorilas em cima dos prédios bebendo cerveja, a desenhar o rabo das zebras num assobio. Enquanto rebocam paredes e erguem torres e cidades, onde as zebras se resguardam dos dentes alvoroçados das hienas.