..:: Abade R. Fatia ::..

e tantas vezes aqui deitado a olhar para o tecto, à espera. Sempre à espera... oiço passados, faço planos envenenado em pensamento, vejo luzes, como árvores, penso em ti, sinto-me alguém na minha cama. A mente é um lugar aleatório

sábado, julho 23, 2005

Myiu - chapter II

A caminho do Fundão.
Myiu olhava pela janela admirado, com os olhos absortos num enorme e imponente rochedo que se aproximava.

- As Portas de Rodão, meu lindo!

A velha sentada à frente dele acordara da leve dormência, como se estivesse programada para o avisar da chegada à vila.
Myiu sorriu-lhe por compaixão e tornou a virar-se para a janela.
Ao lado, no mesmo compartimento, dois rapazes discutiam um assunto aparentemente sem nexo.

A paisagem era agora composta por um rio espesso, delimitado por dois desfiladeiros ricos em vegetação rasa e algum arvoredo semeado aleatóriamente.
Havia aves. Inúmeras aves coordenadas, a esvoaçar entre os desfiladeiros. Aves brancas e de outras cores. Talvez procurassem alimento.

- O do Álvaro tá sempre ferrado.
- Bem podes! O Vilson orienta bem...
- O Vilson é um bacano! Vai-me arranjar algum, pra mim e prá Vera.
- Ela anda fixe?

Nisto entra um hómem desarranjado, com barba e cabelos grisalhos, pele queimada do sol. Usa um chapéu preto em forma de cartola cortada a 1/3, e uma fita cinzenta na base.
Num gesto estudado, encara os dois rapazes enquanto abre a aba esquerda do casaco de polyester preto.
- Já viram que horas são?

Myiu voltou-se.
Viu meia dúzia de relógios com braceletes douradas, pendurados no interior do casaco do senhor.
Tomado de receio, escondeu o seu Casio a pilhas com luz verde, que a mãe lhe oferecera nos anos, e voltou a encarar a janela, fingindo sentir-se à vontade com a a situação.

- Nééépia!
Acabou por responder um dos rapazes, erguendo o polegar da mão para cima, num gesto universal.

Antes de sair, o hómem prendeu-se por breves instantes no compartimento, e deteve-se a olhar para Myiu. Este não tirava os olhos da janela.
A velha permanecia imóvel, a dormir de boca aberta, com a cabeça encostada no estofo de lona castanha.

- Ei moço!
Myiu fingiu não ter ouvido
- EI MOÇO! – gritou.

Myiu voltou-se por fim, apreensivo.
A velha acordou em sobressalto.
O hómem girou 20 graus sobre si, sorriu, e abriu a aba direita do casaco na direcção de Myiu.
Os olhos deste iluminaram-se.

domingo, julho 17, 2005

Raquitices

Fui só pôr uma música pra inspirar o nariz

mandei-me roer a unha continuamente..

a madrugada que chuvisca, é descontinua

e o relógio marca desde sempre as seis e meia.

é feito de madeira eléctrica,

de uma forma ambígua

faço os dentes, maquilho-me à janela. Espero pelo táxi carmin

caí..

no chão ajuizei um anão maltratado. Era um anão maltratado

cocei a borbulha. olhar solitário, em torno do prato

O anão retribui um olhar meigo.

Um olhar e um olho.

Oferece-me um olho estragado, que retira do bolso.

um olho sem sorte.

procuro o botão. nunca viu nada. nem viu dançar nem a colher.

"a spoon of sugar helps the medicine go down! the medicine go dooooown! the medicine go dooown!"

ro + di

Myiu - chapter I

Calou-se a bruma ociosa por detrás do desatino de Myiu.

O combóio já vinha bastante atrasado, e um pardal jazia semi desintegrado na linha, já sem a bagagem, esquecido das horas. Seria o final da linha? Talvez a conclusão lógica de um suicídio bem planeado.

Desprendeu-se uma brisa desconfortavel no cimo dos montes serranos. Myiu tiniu de frio e abotoou o casaco, consciente do momento, e enquanto isso, debruçou o olhar desatento sobre um pássaro pousado inerte no paralelo mais distante de uma linha que não acabava ali, em seu entender..

O guarda Vilar assumou-se ao postigo por breves instantes, e deu a derradeira passa no cigarro antes de o lançar à aleatoriedade da brisa, que agora corria veloz e desesperada, junto da linha.

- E então miudo!

O som das palavras dissipou-se tão depressa como tinha surgido, levado pelo vento ao longo da linha, percorrendo-a e ricocheteando-a ao longo de vários metros.

Myiu voltou a cabeça e esboçou um sorriso descomplexado, embora desalentado com o atraso do corpo férreo que viria a qualquer instante.
A beata rodopiou no chão e rolou até junto do sapato do rapaz

Myiu olhou
O vento desferiu um golpe ondulatório e desnudou o pássaro de forma agreste
O guarda teve uma convulsão
Myiu olhou...
Do lado dos montes chegam os sons destemidos de ferro e aço num galope determinado

A estação ficava agora irremediavelmente mais cedo, e um pardal consentiu mais uma morte.

Myiu…